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Esta é a iniciativa de três professores de Psicologia (e cinéfilos), que passavam horas no whatsapp comentando inúmeros filmes, indicando novas (ou velhas) obras cinematográficas. Buscamos com este blog compartilhar com todos os interessados nossas indicações e opiniões, claro que bastante recheadas de visões psicológicas!


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segunda-feira, 3 de julho de 2017

Desenvolvimento Sexual e Caráter: Hannibal Lecter


Pessoal, estou postando aqui para vocês o ótimo trabalho de análise realizado pelos alunos do 3ºB do ano de 2017, do Centro Universitário UNIFAFIBE, que se apoiaram na teoria da sexualidade de Freud para analisar o comportamento de Hannibal Lecter, famoso personagem dos filmes "O silêncio dos inocentes", "Hannibal", "Dragao Vermelho" e "Hannibal: a origem do mal", além de uma série centrada na maturidade do personagem.

Alunos:  Ana Elisa Buzzulini Parro, Michelly Cristina Santos, Pablo Rafael Macedo da Silva Souza, Rafael Botega Marinho.




 Introdução
O presente trabalho visa analisar, com base na teoria freudiana do desenvolvimento psicossexual, o personagem Hannibal Lecter, vilão enigmático das obras literárias de Thomas Harris, e posteriormente das adaptações cinematográficas de Jonathan Demme, personagem consagrado com a atuação do ator Anthony Hopkins. Intenciona também possibilitar a discussão acerca da influência do desenvolvimento libidinal e análise de possíveis fixações de energia em alguma das fases descritas na teoria de formação do caráter, no personagem em questão (fases oral, anal e fálica).
O caráter não é uma simples representação dos acontecimentos de nossa vida, faz parte de sua fase arqueológica. O bebê, no decorrer de seu desenvolvimento, aprende determinadas atitudes em convivência com os pais ou cuidadores. Na fase oral, por exemplo, há uma atitude de recepção; na fase anal, de posse e na genital de dom, em um desenvolvimento normal deduz-se uma integração dessas atitudes (Merleau-Ponty, 1990), porém, quando ocorre frustração em alguma dessas fases, o desejo/atitude reprimido causará uma fixação energética que refletirá na fase adulta.

1  Objetivos
- Discutir a teoria proposta por Freud do desenvolvimento sexual e sua influência na construção do caráter do indivíduo;
- Correlacionar a teoria Freudiana, apontada no presente trabalho, com as características de Hannibal Lecter apresentadas nas obras cinematográficas: Hannibal: A origem do mal (2007), Dragão Vermelho (2002), O silêncio dos inocentes (1991) e Hannibal (2001).
- Analisar e apontar em qual das fases do desenvolvimento psicossexual o personagem em questão aparenta possuir fixação de energia libidinal.

   A teoria do desenvolvimento libidinal e a formação do caráter

A palavra “personalidade” tem origem grega; significa “máscara” e possui relação estreita com as concepções de pessoa e personagem.  Já a palavra “caráter” origina-se também do grego, e significa gravação/marca. A teoria psicanalítica utiliza destas duas noções para entender o jogo conflitivo interno do indivíduo. Para a psicanálise, a personalidade será vista sinonimicamente como aparelho psíquico ou mental, já o caráter é mais específico, e implica na aquisição e estruturação das marcas deixadas no indivíduo ao longo de seu desenvolvimento, o que determinará suas reações frente aos acontecimentos da vida (REIS; MAGALHÃES; GONÇALVES, 1984).
De acordo com a teoria Freudiana do desenvolvimento sexual, as relações de cada indivíduo com o outro se estabelecem já no início da vida, bem antes da fase genital, e essas relações, pertencentes à denominada fase pré-genital influenciam, e muito, no caráter dos indivíduos na fase adulta (MERLEAU-PONTY, 1990).
Galvan (2012), discorrendo sobre o desenvolvimento sexual segundo a própria Teoria de Freud, menciona a importância de sua obra "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" para a compreensão do desenvolvimento normal da sexualidade humana. Para ela, a fim de melhor compreender essa teoria, é interessante iniciar a linha de raciocínio com o caráter autoerótico e a dominância de pulsões parciais durante o período pré-genital das crianças, quando as áreas genitais ainda não estão suficientemente desenvolvidas a ponto de se tornarem o foco central de sua atenção. Isso significa que, conforme a criança se desenvolve, essas pulsões parciais, repletas de energia libidinal, se concentram ao redor de alguma das zonas erógenas, que não a genital, tornando-se o foco de sua atenção naquele momento. 
Sendo assim, a concepção freudiana inclui a ideia de que a libido atravessa uma sequência de fases, por ele determinadas como fases oral, anal e fálica e essas fases contribuem para demarcar determinadas características do caráter de cada um (GALVAN, 2012).
Essas fases pré-genitais, segundo Merleau-Ponty (1990), são ambivalentes, ou seja, têm duplo sentido, e ficam dependentes das vivências das crianças e da forma como elas estabelecem seus vínculos com os outros em cada uma dessas etapas citadas. Isso se dá, ainda segundo o filósofo francês, devido ao caráter introperceptivo das crianças, que ainda são tão dependentes dos outros e por isso se sentem impotentes diante de certas situações de desprazer e, portanto, oscilam entre o prazer da satisfação e a agressividade de quando não são capazes de atingir esse almejado prazer. Justamente por isso, nem todas as fases pelas quais elas passam durante o desenvolvimento são necessariamente superadas ou completamente ultrapassadas (GALVAN, 2012) e isso pode gerar fixações (não superações) que se estabelecem em algum ponto dessa fase pré-genital do desenvolvimento, impactando na formação do caráter do sujeito adulto, ou seja, o modo pelo qual ele vai compreender e se relacionar com o mundo. Vale lembrar também que, não apenas as frustrações são capazes de marcar uma fase. Uma grande satisfação (que não se repete depois) também pode ser responsável por gerar uma fixação na criança.
Após passar por todas as fases pré-genitais, há um período de latência e, em seguida, o indivíduo atinge a fase típica da sexualidade adulta, quando há predominância da zona erógena genital. Essa fase é caracterizada pela capacidade de reprodução e é conhecida como fase genital. A partir daí é que é possível observar os impactos das não superações das fases anteriores e esse impacto se dá através da predominância de uma dessas fases em que houve mais fixações associadas, que farão com que o caráter do indivíduo adulto seja formado.
Vale ressaltar que, não somente as causas que produzem a predominância de uma das fases no caráter podem ser opostas, mas seus efeitos podem ser igualmente opostos, conforme Merleau-Ponty (1990). Para o filósofo, “se certa fase produz uma situação de frustração, a criança defende-se, mas nem sempre toma consciência disso” (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 99) e, por essa razão, determinadas posturas estabelecidas no adulto também podem ser opostas.
Ainda segundo Merleau-Ponty (1990), a fase oral, por exemplo, é um ponto de partida que o indivíduo nunca esquece, não importa a atitude que tenha. Traços comuns são encontrados, porém, tanto no caráter anal quanto no caráter oral, mas suas condutas não se manifestarão da mesma maneira. Um exemplo disso é a liberalidade, presente tanto em sujeitos orais quanto nos anais. “Mas essa conduta não tem o mesmo sentido para os dois: no sujeito anal, as fases de desperdício alternarão com as fases de avareza”. (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 99).
Na teoria do desenvolvimento sexual, há dois mecanismos na formação de caráter que são elencados por Reis, Magalhães e Gonçalves (1984); um ressalta o lado normal (caráter normal) e o outro, o lado patológico (caráter reativo). A sublimação é o mecanismo predominante na formação do caráter normal, e no caráter reativo predomina a atitude de sentido oposto, denominada formação reativa.
Reis, Magalhães e Gonçalves (1984) relatam que a sublimação direciona o impulso sexual a um objeto não sexual (social e culturalmente valorizado) e ela incide sobre os impulsos pré-genitais que não foram integrados à sexualidade genital total. Já a formação reativa, como já diz a sugestão nominal, é destinada a reagir; possui uma essência defensiva e está associada ao caráter quando este revela certa organização patológica. Nesse caso, não há flexibilidade em seus traços comportamentais e, quando exposto a uma situação intensa, a personalidade fica a mercê das forças livres do inconsciente (REIS, MAGALHAES; GONÇALVES, 1984).

3  O caráter oral

A fase oral é o primeiro momento do desenvolvimento psicossexual da criança e é caracterizada pela obtenção de prazer através da excitação da cavidade oral, lábios, línguas e regiões próximas à boca. O objeto primário de satisfação dessa fase é o seio materno, onde o prazer é obtido através da sucção (REIS; MAGALHÃES; GONÇALVES, 1984). Nesse momento, a criança ainda não distingue o prazer sexual da excitação da boca - do prazer da lactação que sacia sua fome. Nessa fase, distinguem-se dois momentos distintos.
O primeiro, autoerótico, é caracterizado por um desejo violento e imediatista de obtenção de prazer. Por ser totalmente dependente da mãe, a criança experimenta uma impotência quando não é capaz de satisfazer suas pulsões. Mas, por não ser ainda capaz de se diferenciar do outro, ela também experimenta uma onipotência ao satisfazê-las (MERLEAU-PONTY, 1990). Nesse primeiro momento, prevalece a satisfação pela sucção do seio.
Já no segundo momento, denominado de fase oral canibálica ou canibalismo, a satisfação passa a ser a devoração. Ao desenvolver a dentição, a criança morde o seio da mãe como uma forma de incorporar para si seu objeto de prazer. Aqui, o bebê é levado simultaneamente a obter satisfação e destruir seu objeto amado. Ao querer conservá-lo em si, ele o destrói (REIS; MAGALHÃES; GONÇALVES, 1984).
Segundo Reis, Magalhães e Gonçalves (1984), o caráter oral se constrói a partir das transformações dos impulsos orais em traços de comportamento no indivíduo adulto.
Os sujeitos orais primários, em que a libido marca o primeiro momento da fase oral através das fixações, possuem características de atitudes de recepção e/ou de desejos violentos e imediatos, como otimismo imperturbável e ingênuo, generosidade, despreocupação, desprezo pela realidade e confiança cega no futuro, exigência imperativa (quando não possuem uma sucção satisfatória na infância), desejo permanente de tudo obter, impaciência, urgência de falar, fluxo inesgotável de pensamentos, consumismo (REIS; MAGALHÃES; GONÇALVES, 1984), liberdade, alegria, sociabilidade, espírito aberto às ideias novas, tendência à inquietação e à pressa, tendência a ser perpétuos bebês, tendência a crer que são sempre protegidos, superestima, avidez em saber (MERLEAU-PONTY, 1990), dificuldades de frustração, sentimento de impotência, infantilismo, gula e compulsão alimentar, hábito de fumar e tendência ao alcoolismo (toxicomanias).
Quando há forte fixação nessa fase, podem aparecer psicopatologias como a melancolia, com a presença de sintomas psicóticos e risco de suicídio; o transtorno bipolar (alternância entre mania e melancolia) e a psicose (alucinações).
Já os sujeitos orais secundários, os da fase oral canibálica, são caracterizados por uma relação ambivalente dirigida ao objeto sexual (a incorporação e a destruição), sendo que a última configura um sadismo nessa relação afetiva. Essa relação de coexistência das duas valências afetivas opostas pode se transformar em traços de caráter como o uso agressivo da linguagem (significando prazer e desejo de aniquilar, destruir), inveja, hostilidade, ciúmes, mau humor, pessoas inacessíveis (REIS; MAGALHÃES; GONÇALVES, 1984). Outras características da fase oral sádica são: caráter sádico (diferente do sádico anal, porém), insistência, espírito conservador, desejo de ter sucesso, atenção bastante voltada às questões de horários, relações ásperas, caráter acerbo, intolerância à solidão, não gostar de partilhar (ou insistência em dar, no caso de formação reativa, mas que, no fundo, oculta uma grande agressividade), pessimismo ou depressão (MERLEAU-PONTY, 1990), ansiedade mórbida, possessividade e antropofagia.
Quando a fixação nessa fase é muito forte, podem aparecer patologias como melancolia, com presença de angústia profunda, e transtorno bipolar ou até mesmo o canibalismo.

4  Resumo do filme/série:

Hannibal Lecter é um personagem fictício criado pelo jornalista e escritor norte-americano Thomas Harris. A história de Hannibal é retratada inicialmente no livro “Dragão Vermelho” primeiro livro da série, lançado em 1981, e levado ao cinema em 2002. No filme, Hannibal foi interpretado pelo ator Anthony Hopkins.
O segundo livro teve como título “O silêncio dos Inocentes”, lançado em 1988, e adaptado para o cinema em 1991.
O terceiro livro publicado foi “Hannibal”, lançado em 1999 e retratado no cinema em 2001, o que encerraria essa trilogia.
Porém, ainda restavam dúvidas a respeito da sua infância, sobre o porquê de Hannibal Lecter ter se tornado tão insensível, frio e imune a testes psicológicos. Sendo assim, em 2006, Thomas Harris lança o livro “Hannibal, a origem do Mal” proporcionando respostas à penumbra de dúvidas acerca da origem de Hannibal Lecter. O quarto livro foi adaptado para o cinema em 2007 e, dessa vez, o personagem for interpretado por Aaran Thomas (Hannibal Criança) e Gaspard Ulliel (Hannibal Jovem).
Para melhor compreensão da história de H. Lecter, e sua correlação com a teoria Freudiana aqui analisada, será seguida a linearidade da narrativa dos filmes em questão, e não sua ordem de lançamento. Hannibal, a origem do mal (2007), o filme que nos permite tomar conhecimento de sua infância e adolescência conturbada, terá atenção especial no desfecho do presente trabalho.
Lituânia - Polônia, 1944, em plena segunda guerra mundial, a família Lecter se refugia num chalé para tentar escapar dos soldados nazistas, mas algumas horas após tentarem se esconder, os soldados atacam o chalé, onde Hannibal (com aproximadamente oito anos) e sua irmã mais nova, Mischa, presenciam explosões e trocas de tiros, que vão levar toda sua família e os soldados nazistas a mortes violentas.
Hannibal e Mischa ficam sozinhos no chalé, sem alimento e obrigados a enfrentar um frio extremo. Um grupo de saqueadores invade o chalé para se proteger do frio e, no decorrer de sua permanência ali, acabam por maltratar psicologicamente ambas as crianças. Mais tarde, com a escassez de alimento, os saqueadores matam Mischa e a servem numa sopa, inclusive à Hannibal.
Hannibal é resgatado e mandado a um abrigo, que mais tarde seria instalado no antigo Castelo Lecter, residência que pertencia à sua família antes das mortes, durante a guerra. Neste abrigo, Hannibal sofre várias agressões físicas e verbais por ser “diferente”, e pelo fato de gritar muito enquanto dormia (pois frequentemente tinha pesadelos com a morte Mischa). Ele vira motivo de chacota entre os internos e acaba por fugir do abrigo e ir morar na França, com a esposa do seu falecido tio, a senhorita Murasaki.
            Hannibal aprende a prática da esgrima e rituais religiosos da cultura oriental, com sua tia Murasaki. Consegue uma bolsa de estudos e começa a cursar medicina. Os sonhos com Mischa nunca pararam de lhe perturbar e a ânsia de vingar sua morte, punindo aqueles que a maltrataram, fica cada vez mais manifesta, aumentando seu comportamento estratégico e agressivo.
            Hannibal, então, vai até o chalé na Lituânia em busca de pistas que o ajudem a encontrar os homens que mataram Mischa e consegue encontrar suas plaquetas de identificação, com os nomes de cada um. Ao encontrá-los, os matou e se alimentou de suas bochechas.
            Hannibal Lecter se torna um psiquiatra muito influente e conhecido na área médica. É descoberto por seus crimes já bem adulto, com aproximadamente 40 anos, quando é condenado a nove prisões perpétuas. Mas, mesmo na cadeia, ele passa a ajudar o FBI a traçar perfis psicológicos de alguns criminosos perturbados psiquicamente.

5  Discussão:

À vista da teoria do desenvolvimento sexual de Freud, e das fases que a compõem, podem ser atribuídas ao personagem Hannibal Lecter particularidades típicas da fase oral da libido, mais especificamente da fase oral sádica.
O fato de não termos conhecimento de como ocorreu seu desenvolvimento na primeira infância, dificulta a precisão da relação que o personagem em questão obteve em cada fase libidinal. Entretanto, há características marcantes de sua vida adulta (e adolescência) que nos levam a pensar em fixações de energia libidinal na fase oral.
Reis, Magalhães e Gonçalves (1984) relatam que o sujeito de caráter oral tem inclinação especial para a observação científica, devido à sua grande capacidade mental para absorção de conhecimentos e, para os autores, um caráter enraizado desse modo, influencia nas escolhas profissionais, por exemplo. Essa característica nos remete à escolha de Hannibal em cursar Medicina e sua intensa dedicação à sua formação profissional, e futuro destaque na área Psiquiátrica, mostrando aí, fixações já no primeiro momento da fase oral, a fase de recepção.
Porém, dentre as etapas da fase oral, a fase secundária (ou oral canibálica) é a prevalente no caráter de Hannibal. Ela é marcada pela substituição do prazer da sucção pelo da mordida (incorporação e destruição do objeto de desejo) e pode ser percebida no Dr. Lecter quando do uso de uma linguagem mordaz (que gera prazer junto ao desejo de aniquilar). Esse traço de seu caráter sádico é marcado pela coexistência de tendências amistosas e hostis (ambivalência) dirigidas à suas vítimas, seus objetos de satisfação (REIS, MAGALHÃES; GONÇALVES, 1984). E Hannibal Lecter, além da atitude estratégica de ação sobre essas vítimas, utiliza o próprio discurso e/ou atitude da vítima para justificar e argumentar seu ato criminoso, fazendo uso de “jogos mentais”/tortura psicológica a fim de causar o sofrimento anterior à morte (sadismo acentuado, típico desse segundo momento da fase oral).

A característica mais marcante do psiquiatra Lecter, entretanto, é que ele se alimenta (literalmente) de suas vítimas, adentrando na definição precisa do canibalismo (antropofagia), relevante característica da fase oral secundária.
Além disso, outra marca da fase oral sádica no caráter de Lecter é o fato de ele não ser uma pessoa acessível. “Socialmente, o caráter canibálico apresenta-se como agressivo, mal-humorado e inacessível. Tem-se, na figura mítica do vampiro, a melhor expressão que a humanidade criou para designar tal caráter”. (REIS, MAGALHÃES; GONÇALVES, 1984, p.30, grifo nosso). Corroborando essa característica, é possível verificar no comportamento do Dr. Lecter o quanto ele é uma pessoa de difícil acesso. Um exemplo disso encontra-se no filme Hannibal (2001) onde, logo no início, o enfermeiro Barney, que cuidou de Hannibal na prisão, relata à Mason Verger (vítima de Hannibal que sobreviveu) que “Na maioria das vezes, o Dr. Lecter não respondia aos visitantes. Abria os olhos o tempo suficiente para insultar algum aluno que ia vê-lo”.
Ademais, na mesma ocasião, Barney também afirma que “Ele respondia às perguntas de Starling. Ela o intrigava. Ele a achava encantadora e divertida”. É perceptível o quanto essa “amizade” entre os dois causa estranheza em quem conheceu o canibal de perto, pois o fato do psiquiatra se afeiçoar a alguém não era habitual. Ao final desse filme, inclusive, ao salvar e poupar a vida da agente do FBI, Hannibal demonstra realmente ter afeto por ela (seu objeto amado), através da manifestação de sentimentos de gratidão (por ela lhe ter resgatado dos javalis) e de um comportamento generoso dele para com ela. Esses sentimentos positivos, quando observados em um caráter oral sádico, podem ser explicados, de acordo com Reis, Magalhães e Gonçalves (1984), devido às formações reativas que aparecem nos sujeitos, demonstrando uma característica defensiva e certa organização patológica.
Outro traço oral canibálico manifesto em Lecter é a insistência. Conforme Merleau-Ponty, sujeitos orais secundários “são sujeitos cuja conduta favorita é a insistência, a oração, o pedido”. (MERLEAU-PONTY, 1990, p.101, grifo nosso). Ao longo de toda a quadrilogia dos filmes, é possível observar o quanto Hannibal é persistente em tudo o que deseja realizar. Um exemplo que vale ser citado é sua obstinação em encontrar e matar os assassinos de Mischa, em Hannibal: a origem do mal (2007). Ele, ignorando os apelos de sua querida tia Sra. Murasaki, insiste em se vingar. Mesmo com a polícia em seu encalço e lhe dando uma chance de escapar ileso dos primeiros crimes cometidos, ele persiste. E insistência cega similar se mostra presente em toda sua trajetória retratada.
A título de suplementação da análise psicanalítica para além das marcas de caráter, anteriormente apresentadas, é possível citar que é identificável na conduta do personagem de Lecter um mecanismo de defesa primitiva, a negação, em que a consciência evita a realidade, pois ela pode levar a perceber situações que lhe são inadmissíveis. Este mecanismo de defesa é marcado pela descontinuidade na relação mente-realidade e caracteriza uma importante passagem de sua vida: ao final de sua adolescência, já cursando medicina, um dos responsáveis pela morte de Mischa anuncia que, embora Lecter não aceite, ele também se alimentou da irmã na infância, pois os saqueadores que os fizeram reféns mataram Mischa e a serviram numa sopa para todos, inclusive Hannibal. Volpi (2008) diz que “os adultos têm a tendência de fantasiar que certos acontecimentos não são, de fato, do jeito que são, ou que na verdade nunca aconteceram”. Essa defesa primitiva, aliada aos acontecimentos violentos por ele vividos (tais como a perda trágica dos pais, a morte horrenda da irmã, a ida para orfanato em sua antiga residência e os maus tratos dos internos), pode ter auxiliado na potencialização das fixações na fase oral sádica, impelindo Hannibal aos atos de canibalismo.
Por outro lado, há que ser considerado também, que o que pareceria à primeira vista tratar-se de uma negativa pode tratar, na realidade, de uma afirmação. Sendo assim, a denegação pode ser considerada como o mecanismo de defesa utilizado por Lecter neste caso, pois uma parte de sua mente nega o fato dele ter se alimentado de Mischa, mas outra parte vive o desejo canibal livremente, sendo a última a que persiste. A denegação (que vem do termo alemão Verneinung e é uma característica típica da perversão) vinha sendo traduzida por negação; no entanto, a palavra denegação seria mais adequada. Denegação é um conceito mais amplo e de grande importância na teoria psicanalítica, pois, numa visão mais completa, negar acaba sendo mais do que simplesmente querer destruir (FURTADO, 2011).
Desta forma, é como se na denegação o sujeito ficasse numa oscilação entre a certeza de ser (canibal, nesse caso) e a certeza de não ser (negando ter se alimentado da irmã, no caso de Hannibal), não ocorrendo assim um desligamento completo com a realidade (SCHLACHTER; BEIVIDAS, 2010) como se subentenderia ao utilizar o termo negação.

   Considerações Finais:

A execução do presente trabalho caminhou de maneira extremamente prazerosa e fluida. Entretanto, um questionamento ainda paira sobre um ponto específico: é possível atribuir uma potencialização do comportamento canibal do personagem, proveniente de uma fixação na fase oral sádica, como consequência dos excessivos traumas posteriores por ele vividos?

Por se tratar de uma obra cinematográfica, ou seja, de cunho fictício, não é possível analisá-la a fundo, considerando seus acontecimentos como aspectos de realidade; até porque, o filme que contribuiu em grande parte com a discussão foi o último escrito e produzido. Sendo assim, muito do que foi exibido foi propositalmente pensado para justificar as características comportamentais de Hannibal Lecter e, nesse ponto, cabe uma reflexão: o quanto as vivências traumáticas de Hannibal apresentadas no filme “Hannibal: a origem do mal”, como a perda dos pais de maneira tão violenta, a morte de sua querida irmã e sua angustiante estada no orfanato, podem ter amplificado suas atitudes decorrentes das fixações? Ou ainda, o quanto esses traumas posteriores podem ter potencializado seu comportamento canibal real (e não simbólico)?

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