A maioria das pessoas podem procurar
em “Garota Exemplar” uma narrativa policial, cercada de mistérios que rondam
esse subgênero de filme: o mistério que se desenvolve sobre um suposto crime e
as complicadas investigações que se seguem.
Porém, não parece ser o roteiro
misteriosos o mais interessante desta película e sim as alegorias sobre os
discursos amorosos que insistem em nos frustrar.
A bela Amy Dunne desaparece no dia
do seu quinto aniversário de casamento, deixando o marido Nick em apuros. A
abertura do filme já nos coloca em contato com a tensão e raiva que podem se
transformar os projetos românticos quando a única perspectiva que se tem é o
narcismo próprio. É a voz de Nick quem nos esclarece enquanto lembra-se de
afagar os cabelos de sua mulher: “Quando penso na minha esposa, penso sempre na
cabeça dela, me imagino partindo seu belo crânio esmiuçando seu cérebro em
busca de respostas. A questão básica de qualquer casamento: ‘O que você está
pensando? Como se sente? O que fizemos um com o outro?”.
O diretor nos leva então 5 anos
antes dos acontecimentos. Amy é uma mulher de 30 anos. Como a maioria das
pessoas de sua geração ela está tensa com o imperativo do sucesso absoluto que
rondam os imaginários contemporâneos. Não conhece seus talentos, sua beleza ou
inteligência. Opera emocionalmente pelo radicalismo, aspecto comum nos dias de
hoje: ou se é bom ou não é.
O agravante está nas perspectivas de
seus país, escritores de livros infantis famosíssimos desde que ela nasceu, a
série ”Super Amy”, homenagem que fizeram à filha, nomeando a heroína de uma
série de livros bem ilustrados, inclusive similar à aparência dela.
Se a Amy real não conseguiu entrar
no time de basquete, a Super Amy teve um volume dedicado só para suas façanhas
em quadra até chegar ao primeiro lugar no final do campeonato estudantil.
Enquanto Amy sonhava em ter um animal de estimação, Super Amy possuí um
cachorro que se torna parceiro prodígio de suas aventuras. E para culminar, lá
está a Amy real, chateada e solteira aos 30 anos, na festa de lançamento do
livro que consagra o casamento de Super Amy.
Os pais podem ser cruéis quando
acreditam no discurso do investimento, se pagaram boas escolas, bons
brinquedos, bons passeios, boas roupas, bons livros, boa alimentação, sessões
de carinho, etc. esperaram colher não muito tarde as expectativas que
projetaram em seus filhos através do respaldo cultural de causa e efeito.
Afinal, o que é a dor da existência quando se “tem de tudo”?
O diretor David Fincher foi muito
artístico em construir no lançamento do livro uma cena típica de comédia
holiwoodiana que subjetiva a todos nós quando o assunto é amor. Amy está
respondendo perguntas à imprensa quando o simpático rapaz que ela namora há
pouco tempo, o jornalista Nick, surge na coletiva de entrevistas e a pede
romanticamente em casamento.
Então Amy julga chegar à salvação:
toda a desaprovação que construiu ao longo da vida por si mesma, por seus pais,
pela cultura do espetáculo é revertida a seu favor, pois Nick é perfeito, Nick
a entende, Nick não quer a super Amy ele quer a Amy (que também pode ser super
agora).
Eles desaprovam casais que não dão
certo. Prometem que nunca serão como eles. Porém aqui a promessa é levada as últimas
consequências.
Aos cinco anos de casamento eles já
sabem bem que sonhos particulares podem rapidamente definhar quando dependem da
perspectiva de mais de uma pessoa. Não é redundante dizer que para se
relacionar precisamos reconhecer o acontecimento do outro e não apenas pensar
através de nossa perspectiva, principalmente quando concebemos o amor romântico
como forma de superação de toda uma existência.
Agora que Amy desapareceu a cidade
toda está muito preocupada em busca desta querida mulher, outdoors, linha para
informações, campanhas, etc. Mas de repente Nick começa a dar indícios de
alívio! Seria ele o principal suspeito?
Não é um grave spoiler dizer o que
já suspeitávamos: antes do meio do filme o diretor nos mostra que Amy está viva
e escondida! Ela planejou tudo para vingar-se do marido que ao não conseguir
sustentar todas as suas frustrações buscava abandonar a relação ao mesmo tempo
que se sentia um grande perdedor.
O mistério principal não é quem
matou Amy, mas se Nick vai conseguir se desvencilhar da armadilha muito bem
planejada que ela armou ao descobrir que o amor não lhe fazia super.
Aqui encontramos uma das alegorias
do amor romântico contemporâneo: ele se constrói através de discursos de amor
perfeito, relação institucional plena e realização sexual absoluta, tudo isso
junto pode mandar para os ares qualquer dilema social, emocional ou filosófico.
E claro, só depende de você, e apenas de você manter este patamar.
Assim a narrativa nos dá um panorama
hiperbólico da dor que é abandonar nossos aspectos egoístas que encontram
ressonâncias na cultura do consumo. Assumir responsabilidades, limitações e
conhecer os paradoxos da existência que não podem radicalmente serem
classificados apenas como bons e ruins.
Amy não vai ficar com a conta, vai
fazer Nick pagar por ter frustrado os problemas que já estavam em andamento
antes mesmo de se conhecerem. O sofrimento aqui é mútuo, atitude mais
“anti-romântica” parece impossível. É irônico, e pensar que as intenções eram
as melhores...
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